Pantaneiro transforma propriedade do avô desbravador em confortável hotel no Porto Jofre e foca no ecoturismo
Há quem vá ao Pantanal para pescar, tem quem prefira observar pássaros, fotografar onças ou apenas fugir da rotina estressante da cidade. Não importa o objetivo, existe sempre muito mais para se encontrar do que aquilo que se busca. E o contato com o pantaneiro é sempre parte importante da visita. Sotaque, histórias, conversa jogada fora inserem mais ainda o visitante no Pantanal. Em uma hospedagem no Hotel Pantanal Norte, dois dedos de prosa com o proprietário do local, Jamil Rodrigues Costa, 66 anos, pode valer muito mais do que um dia de passeio para conhecer o local e sua história.
Seo Jamil veio ao mundo pelas mãos de uma parteira, num rancho de palha às margens do Rio Cuiabá, no coração da maior planície alagada do planeta. Foi o último da família a nascer nessas circunstancias. É o mais velho de cinco irmãos e depois dele todos tiveram seus partos em hospitais na cidade. Viu em seis décadas de Pantanal a mudança da mentalidade dos habitantes, tanto na relação com a natureza quanto na busca por renda. O hotel Pantanal Norte é o resultado direto dessas mudanças às quais o pantaneiro se viu obrigado a fazer ao longo dos anos.
O avô de Jamil foi um dos desbravadores do Pantanal e iniciou a família naquelas terras. “A gente veio basicamente do nada. Meu avô veio pra cá naquela época desbravar, isso aqui que era um sertão e não tinha nada. Isso aqui naquela época para você ter uma noção nem era vendido. Você vinha descendo o rio, ia se informando com seus vizinhos, quem era seu vizinho pra baixo, pra cima, até chegar onde não tinha ninguém, ai você já falava então vou ser seu vizinho, vou requerer essa parte. Ai você registrava no Incra e requeria para ser proprietário”, conta.
“Naquela época não tinha estrada, não tinha comunicação, não tinha nada. Só tinha o rio, entendeu? E esses caras criaram impérios aqui”, relata. “Fico admirado de ver de como naquela época, com todas as dificuldades, aquele pessoal conseguiu montar um império aqui. Uma riqueza muito grande. Você saia de Cuiabá até Corumbá, por essa faixa de rio, era muito rico. Não rinha ninguém passando fome, era uma fartura muito grande. Morávamos num rancho de palha, mas tinha uma fartura. Você chegava em qualquer casa e a pessoa independente de conhecer ou não, já te acolhia, fazia questão de que você ficasse ali pelo menos um dia para conversar e te atendia muito bem. E nós estamos falando das pessoas ‘mais baixas’, que moravam nos ranchos de palha. Fora os impérios que tinha aqui”.
O patrimônio dos pantaneiros foi crescendo, segundo Jamil, com a lida do gado e a venda de peles. “As pessoas tinham fazenda, mas na verdade o negócio principal deles era o comércio da pele. Da onça, do jacaré, da capivara. Era um giro muito rápido. O cara saia à noite e amanhecia com 50 jacarés e já estava o comprador ali no porto esperando. Era acabar de preparar a pele e ele já estava com o dinheiro no bolso e com isso os fazendeiros não precisavam do gado. Aquilo ali era uma poupança”, explica. “Na época, quem tinha cinco mil cabeças de gado não eram considerados fazendeiros. Era criador. Os fazendeiros propriamente ditos eram os que tinham de 10 para cima”.
A proibição da venda de pele jogou um balde de água fria em muitos fazendeiros da região. Mas não para todos. Com as restrições, o produto ficou mais valorizado e o contrabando ganhou força. Os caçadores empurrados para a clandestinidade enfrentavam policiais e a saída para estancar de vez a atividade foi repreender o consumidor e não mais o vendedor. Foi o fim de um ciclo.
“Não existe mais aquela pessoa que compra couro. Agora se você souber fazer um trabalho encima dos animais vivos, vai ver que eles são muito mais rentáveis do que quando você fazia o comércio dele morto. E as pessoas, hoje, grande parte já tomou essa consciência. Quem não tomou, está indo à falência”, diz Jamil, que se usa como exemplo. Ele conta que com a chegada da transpantaneira, criar gado na região ficou inviável, pois ela interferiu diretamente no equilíbrio ambiental na região. “Na minha propriedade, onde meu vô criava 5 mil cabeças de gado, hoje não consegue se criar nem mil, nem 500. Porque onde era o campo em que criava o gado, tinha o período de cheia e você tinha o controle, você sabia quando ia encher, quando ia vazar, o volume. Hoje você não tem controle disso”.
Se por um lado a transpantaneira inviabilizou para Jamil a criação de gado, facilitou a vinda de sua nova fonte de renda: o turismo. E o projeto do hotel foi se fazendo aos poucos. Os anos de 1980 foram movimentados no Pantanal. Carros e carros de pescadores chegavam na região e Jamil organizou com o pai alojamentos para acomodar os visitantes. “Chegou a ter aqui 300 pessoas por dia, todos pescadores”, lembra. Mas esse novo ciclo também era altamente predatório. “Não tinha lei para nada, um cara vinha aqui e levava 10 mil kg de peixe de qualquer tamanho”.
Mesmo com a regulamentação da pesca, abusos ainda aconteciam. “Essas pessoas não vinham aqui para fazer turismo, vinham fazer comércio. Pegava nosso peixe de graça e vendia na cidade dele lá. O último cara aqui que eu cheguei e botei um basta, veio com uma F4000 com a carroceria toda cheia de freezer. Ele encheu e não contentou, foi em Poconé, comprou isopor e gelo e encheu aquilo de dourado, pintado, pacu. Também não contentou com isso e foi numa fazendeiro aqui do lado e comprou sal para salgar pra levar. Quando eu vi aquilo, falei, por favor meu amigo, se ponha aqui pra fora e não volte aqui nunca mais”.
O endurecimento na legislação e a melhoria na fiscalização também afastou a pesca predatória no Pantanal. A pesca esportiva acabou se tornando o foco do turismo e posteriormente a observação de animais, com a mais recente visita para buscar a onça pintada. Nesse contexto, o que era um espaço de alojamento em uma fazenda no Pantanal acabou se tornando um aconchegante hotel. Na época da pescaria predatória, Jamil e o pai fizeram uma pequena estrutura de acampamento, com banheiro, quiosque, ponto de água pra limpar o peixe. O negócio cresceu tanto que o pai de Jamil passou para ele tocar sozinho.
“Nós não tínhamos essa estrutura que temos hoje, cada um trazia sua estrutura, um gerador atrás do outro. Então nós começamos com esse pessoal que abriu a visão da agente e trouxeram o dinheiro para a gente começar, mas quando esse pessoal sumiu com a lei, começamos a criar a estrutura de alojamento primeiro. Era um alojamento grande, com oito camas, tinha banheiro lá dentro, mas ele fazia a comida dele, dávamos só a estrutura”.
O último ciclo de mudanças começou nos últimos cinco anos, com a busca por ecoturismo. Hoje, o hotel de Jamil é lotado apenas 40% por pescadores e esse percentual só cai. Isso porque o ecoturista é muito mais organizado e planeja com muita antecedência a visita. Quando o pescador tenta marcar algo para “semana que vem”, já está tudo lotado.
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