Pesquisa estuda potencial de tratamento da ayahuasca com dependentes químicos
Legalizada para o uso em rituais religiosos, a ayahuasca — bebida alucinógena produzida a partir da combinação de algumas plantas, entre elas um cipó nativo da Amazônia — vem se tornando cada vez mais objeto de estudos que tentam comprovar seus possíveis efeitos terapêuticos com dependentes químicos.
Em uma pesquisa recente, professores e ex-alunos da Universidade Braz Cubas, em São Paulo, viciaram cobaias em álcool etanol e, posteriormente, tentaram tratar os camundongos com o extrato das plantas. Os efeitos, segundo contam os docentes, foram surpreendentes.
Além de obter sucesso com a recuperação do vício dos animais, o experimento conseguiu também a eficácia da ayahuasca na contenção das recaídas, já que, mesmo desafiadas com o álcool, imitando uma condição comum na vida de dependentes químicos em recuperação, as cobaias reagiram de maneira positiva, como descreve André Hollais, responsável pelo estudo.
— Se um abstinente recai, o efeito da droga nesta recaída é muitas vezes superior. Com a ayahuasca, esse efeito foi perdido, e era como se os animais estivessem tomando álcool pela primeira vez.
A ideia dos pesquisadores é continuar com os testes, avaliando outras drogas além do álcool. Um dos objetivos a longo prazo seria verificar a possibilidade de transformar a ayahuasca em um medicamento de uso comercial, focado na reabilitação dos dependentes.
Hollais explica que se trata, ainda, de um longo e cauteloso caminho até que isso vire realidade, mas que os estudos seguirão nesse sentido até que se verifique a viabilidade de encapsular as propriedades da ayahuasca.
Enquanto isso, o chá, que, a princípio, teria apenas como finalidade o uso em rituais espirituais, já é usado, ainda que de maneira informal, para o tratamento de viciados que buscam apoio nas seitas.
Carlos Henrique Arouca, coordenador do centro de estudos xamânicos Porta do Sol, em São Paulo, afirma já ter presenciado diversos episódios de recuperação em seu grupo, e estima que cerca de 90% dos frequentadores que chegam ao centro à procura da cura de seus vícios fazem algum tipo de modificação no consumo de drogas.
— Já vi pessoas que vinham direto de uma noite de bebedeira, de uma balada, por exemplo, e que, quando acaba o trabalho, dizem ter tido uma revelação e que a partir daquele momento se comprometem a não usar mais. Há algumas que já estão limpas há dez anos.
Embora acredite que a ayahuasca tenha de fato o poder de cura desse tipo de paciente, Arouca não vê com bons olhos a possibilidade de ela se transformar em um remédio auxiliar no tratamento do vício em álcool.
Para ele, a infusão das raízes só funcionaria dentro do contexto ritualístico em que é comumente aplicada, e transformá-la em algo comercial faria parte de uma tentativa da indústria farmacêutica de obter o monopólio de substâncias da cultura popular.
— É uma planta de poder dentro de uma conotação religiosa. Tomar a ayahuasca no meio urbano abriria o inconsciente para muita sujeira. O rito garante que a pessoa vá e volte com segurança, funcionando como um mapa onde se pode verificar as instâncias da sua mente e voltar à consciência com segurança. Evidente que muitas pessoas se beneficiariam, mas o numero de malefícios que podem ser gerados é muito grande.
A psiquiatra Fernanda de Paula Ramos, especializada em dependência química, também sugere prudência, e que se invista no maior número de pesquisas possível sobre o potencial de cura pela ayahuasca.
Para a médica, o ponto importante a se observar é o fato de que, mesmo sendo uma substância legalizada, ela ainda pode causar danos ao indivíduo, como no caso do próprio álcool e também do cigarro.
Outra questão que Fernanda classifica como “perigosa” é a eficácia ou não de uma terapia que “troca” uma droga pela outra — o álcool pela ayahuasca. Para ela, o ideal seria um caminho intermediário que buscasse a abstinência absoluta, sob o risco de se continuar prejudicando o organismo dos dependentes.
— De qualquer maneira, é preciso que se estude melhor, especialmente porque é uma área em que ainda temos poucos recursos fármacos eficazes, em que sempre se tenta de tudo. Muitas pesquisas apresentam possíveis soluções, mas passa o tempo e nada se comprova. Qualquer pesquisa é válida, desde que feita com rigor técnico e seriedade, mas, na verdade, isto não nos dá uma grande esperança.
Do outro lado, em uma corrente entusiasta do uso terapêutico da ayahuasca, está o professor da Unifesp e coordenador do Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes), Dartiu Xavier da Silveira.
Ele relata que não é de hoje que a medicina busca medir a extensão dos supostos benefícios medicinais da infusão. Já em 1995, uma tese de mestrado escrita por Eliseu Labigalini mostrou uma relação entre a ayahuasca e a cura de pacientes alcoólatras, e, em 2000, um estudo coordenado por Evelin Doering na Unifesp mediu os efeitos na população mais vulnerável de todas: os adolescentes.
Testagens complexas em 80 voluntários mostraram que a ayahuasca é, de acordo com o médico, algo bastante seguro, sem qualquer tipo de efeito danoso ao cérebro.
Atualmente, Silveira pleiteia verba para uma nova pesquisa sobre o assunto, envolvendo dependentes de álcool e também outras drogas. Ele diz que, embora haja hoje em dia uma abertura na ciência que não existia 20 anos atrás, ainda há grandes pontos de embate que atrasam o progresso dos estudos.
— É uma questão ideológica. Nossa cultura ocidental foi muito embasada no movimento proibicionista, e ainda vemos raciocínios típicos de quem pensa em termos de guerra às drogas. Esta dicotomização em drogas do bem e do mal é fruto do proibicionismo. As pessoas têm uma visão muito negativa dos alucinógenos porque eles foram considerados drogas perigosas, o que não é verdade. Não existe nenhum relato no mundo de alguém que tenha se viciado em alucinógenos, nem na ayahuasca, nem no LSD, nem em nada.
Cuiabamais